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Editorial – Luís Trindade

30 maio, 2023
© Tinta da China

Correspondências

Organizamos muitos eventos científicos. Há quem diga até que o fazemos em demasia, que passamos tanto tempo a organizá-los que nos falta esse tempo para ir aos eventos dos outros, passar umas horas e dias a ouvir, discutir e partilhar. E damos, claro, muitos nomes aos eventos que organizamos, sem que muitas vezes pensemos bem por que chamamos conferência ou seminário, simpósio ou palestra, ao que estamos a fazer. Mas o tempo que não temos para colóquios e debates também falta dentro dos próprios eventos, nas intervenções a correr com dez minutos para “questões” finais. O resultado é que aprendemos pouco nessas ocasiões, apressados com o prazo final e o horário para cumprir, que só dão tempo ao que está próximo – disciplinas, colegas, instituições – e nos confirma o que já sabíamos. Tim Ingold (que a pandemia impediu de vir ao CEIS20 dar uma conferência, ou oficina…) propôs recentemente que nos voltássemos a corresponder, como quando escrevíamos longas cartas e ficávamos à espera da resposta. Talvez isso nos permitisse recuperar um cuidado e espontaneidade perdidos na comunicação contemporânea. A correspondência dá-se tempo, implica ‘atenção e deliberação’ na escrita e pede ‘a paciência da espera’ na leitura. O que seria um evento sob a forma de correspondência? Que tipo de conhecimento ganharíamos em mensagens lentamente lançadas sem hora marcada nem prazo para a resposta? Talvez fosse algo semelhante ao que o mesmo Ingold propôs para superarmos os domínios disciplinares, para além do interdisciplinar e do transdisciplinar (que lhe parecem ainda negociações territoriais): uma libertação da imaginação do seu ‘confinamento dentro dos conceitos e idiomas’ disciplinares. O tempo da imaginação é o da espera da correspondência, quando dialogamos mentalmente com a resposta, imaginada, do nosso interlocutor. O trabalho académico como uma carta em circulação, uma conversa à solta (e por isso aberta à contingência e à alteridade), sempre pronta a ser retomada, sem despedida nem sessão de encerramento.


Luís Trindade

Vice-Coordenador do CEIS20 (2020 - 2023)