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Interdisciplinaridade — Testemunho de Ana Leonor Pereira, e um texto reflexivo de João Rui Pita

Leia ambos os textos
26 fevereiro

A propósito da recente aposentação da Co-coordenadora do Grupo 3 – História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, Ana Leonor Pereira, apresentamos o seu testemunho autobiográfico, acompanhado de um texto reflexivo de João Rui Pita (Co-coordenador do Grupo 3) acerca do percurso científico da investigadora, com enfoque no seu relevante papel para o CEIS20 e numa abordagem interdisciplinar.


TESTEMUNHO de Ana Leonor Pereira

“Estranha-se. Depois, entranha-se.”, Fernando Pessoa

A nossa experiência interdisciplinar foi sempre muito positiva (também ao nível dos efeitos subjetivos) e continuou a ser nos últimos 25 anos, enquadrada no grupo de história e sociologia de ciência e da tecnologia do CEIS20. Experiência positiva com as imperfeições próprias e inesperadas de um processo de aprendizagem, num contexto local e internacional. Nas últimas décadas do século XX e no primeiro quartel do século XXI, a cultura científica, ligada à história da ciência, história internalista, história institucional, história económica e social da ciência e outras, à filosofia da ciência, à comunicação de ciência, etc., foi bastante valorizada a nível local e no plano global. Esse reconhecimento veio ao encontro dos nossos interesses maiores de investigação e, por uma conjugação feliz de fatores e circunstâncias, pudemos concretizar uma aventura intelectual interessante (há muitas!). Em concreto, e para abreviar muitíssimo, tive a possibilidade de ler Charles Darwin depois de ter lido Karl Marx. Estes dois vultos geniais, ambos cientistas da segunda metade do século XIX, contemporâneos um do outro, foram, cada um à sua maneira, praticantes da interdisciplinaridade. Esses caminhos interdisciplinares percorridos ficaram, obviamente, abertos e daí resultou, para lá das suas obras distintas, uma criatividade sistémica que continua a dar frutos em muitas frentes disciplinares e interdisciplinares. Marx e Darwin foram contemporâneos de muitos outros protagonistas nas diferentes áreas científicas, como o genial Pasteur, também praticante da interdisciplinaridade, uma inigualável fonte de inspiração e de inovação que colocou Pasteur e Koch (a França e a Alemanha) no caminho de muitos avanços científicos com projeção na saúde de populações vegetais, animais e humanas, rumo à hodierna “saúde global”.

A epistemologia ensina que não há nenhuma receita de lógica interdisciplinar que proporcione as condições ideais para a criatividade se substancializar. Mas sabemos que a interdisciplinaridade se pratica como estratégia contextual e textual propícia à inovação científica e tecnológica em casos sinalizados no mapa do mundo. Claro que toda a interdisciplinaridade tem exigências de literacia metodológica que reconhecemos no decurso duma determinada investigação, tendo ou não treino teórico sobre as estratégias interdisciplinares. Temos de estar dispostos a sair da nossa zona de conforto ligada ao percurso que fizemos em etapas anteriores, com vinte ou mais anos de idade, conforme a caminhada de cada investigador e respetivos contextos, singulares, institucionais e outros.

A interdisciplinaridade como prática regular no trabalho científico ligado à construção da memória, à narrativa historiográfica da cultura científica, como é o nosso caso, não é redutível a imagens ou metáforas por mais complexa que seja a sua carga semântica. Ainda assim, registo que a interdisciplinaridade é como o slogan publicitário de Fernando Pessoa para a Coca-Cola, que todos conhecem: “Estranha-se. Depois, entranha-se”! É um caminho que se faz caminhando com os recursos intelectuais e emocionais disponíveis. Lembrando um grande poeta espanhol, Antonio Machado, “se hace camino al andar”.

Caminhando, deixámos um rasto bibliográfico: obras coletivas coordenadas em colaboração com João Rui Pita, Egas Moniz em livre exame (2000); Miguel Bombarda e as singularidades de uma época (2006); Rotas da Natureza. Cientistas, viagens, expedições e instituições (2006). A obra coletiva, Darwin, Evolution, Evolutionisms (2011) com João Rui Pita e Pedro Fonseca. Na sequência das comemorações darwinianas e darwinistas de 2009 registe-se, igualmente, a publicação de dois capítulos, em colaboração, na obra internacional coordenada por Thomas E. Glick e Elinor Shaffer, The literary and cultural reception of Charles Darwin in Europe (2014). Noutra das nossas frentes interdisciplinares, em 2023, publicámos o décimos terceiro volume da obra História Interdisciplinar da Loucura, Psiquiatria e Saúde mental — XIII e o quinto volume da obra Mulheres e Loucura que também é interdisciplinar e internacional.


Ana Leonor Pereira investigadora: breve súmula, por João Rui Pita

Em 1997 o CEIS20 deu os seis primeiros passos institucionais – foi fundado. Em 1998, depois de um complexo trabalho de candidatura à Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT para financiamento de novos centros, o CEIS20 obteve a classificação de Muito Bom e passou a ser financiado pela FCT. Tanto eu como a Professora Doutora Ana Leonor Pereira participámos, a convite do Professor Doutor Luís Reis Torgal, na fundação do CEIS20. A Professora Doutora Ana Leonor Pereira, algum tempo depois, integrou, também, a direção do CEIS20 quando a avaliação era Muito Bom. Foi um desafio muito interessante e importante não somente por participarmos na fundação do CEIS20 como, também, por fundarmos o Grupo de História e Sociologia da Ciência, mais tarde, designado por Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia - GHSCT. Os desafios que foram colocados iam mais além do que formar um grupo de investigação e de liderarmos esse processo. Era necessário termos projetos, preferencialmente financiados. Mas os projetos só surgem com uma prévia organização de recursos, neste caso do GHSCT. E juntamente com a Professora Doutora Ana Leonor Pereira começámos um trabalho verdadeiramente interdisciplinar, muito sublinhado e reconhecido, tanto nacional como internacionalmente, que mais não foi do que transpor e adaptar no plano institucional o que já fazíamos em conjunto há vários anos — o entendimento perfeito tanto no plano pessoal, já de muitos anos, como científico e institucional. Lembro aqui duas publicações fulcrais: o longo artigo com mais de cento e vinte páginas publicado na Revista de História das Ideias, intitulado “Liturgia higienista no século XIX — pistas para um estudo” que constituiu um autêntico programa de investigação a vários anos. Do mesmo modo foi muito importante o nosso capítulo intitulado Ciências no volume quinto da História de Portugal sob direção de José Mattoso e coordenação do volume de L.Reis Torgal e J.Lourenço Roque. Ambos os textos são datados de 1993.

Nos primeiros anos do GHSCT nós os dois éramos os únicos doutorados, um proveniente da Faculdade de Farmácia e outro da Faculdade de Letras. O GHSCT foi aumentando a sua consistência, gradualmente, tanto a nível dos recursos humanos como no plano da investigação com passos curtos, mas sólidos e os resultados foram surgindo. Em pouco tempo tivemos financiamento para um projeto científico-editorial pela Câmara Municipal de Estarreja/Casa Museu Egas Moniz que permitiu no plano científico abrir um projeto e depois uma linha devotada a Egas Moniz. Entre 1998 e 2002 foram realizadas várias publicações sendo de sublinhar a marcante obra coletiva coordenada por Ana Leonor Pereira e João Rui Pita, Egas Moniz em livre exame (2000) uma obra que tivemos a felicidade de ver que abriu novas frentes de investigação sobre Egas Moniz, inclusivamente no CEIS20 com tese de doutoramento. Em 1998 candidatámo-nos a um projeto importante e inovador: era preciso saber o que havia sido escrito em Portugal sobre a história da medicina e a história da farmácia e outras áreas das ciências da saúde e assim tivemos o projeto Repertório Bibliográfico da Historiografia Sanitária Portuguesa (séc. XVIII—XX) — Problemáticas e Fontes Especializadas / SANISTÓRIA (PRAXIS/P/HAR/13114/ 1998) financiado pela FCT. Foi uma candidatura pioneira para o CEIS20, que havia sido recentemente criado, e que chegou a bom termo de acordo com o previsto. Deste projeto resultaram várias comunicações e publicações. Depois tivemos dois projetos contemplados com o Programa Gulbenkian de Estímulo à Investigação, um deles em 1999 e outro em 2000, designadamente O fármaco do século XX: a penicilina. A introdução da penicilina e dos antibióticos em Portugal e Pasteur em Portugal. A introdução das doutrinas de Pasteur e da mentalidade etiopatológica em Portugal projetos que implicaram prémios a dois jovens investigadores em início de carreira. Alguns anos depois tivemos novo projeto financiado pela FCT, o Público e Privado: História Ecológico-Institucional do Corpo (1900-1950) (POCTI/HAR/49941/2002) iniciado em 2004. Todos estes projetos foram fundamentais como alicerces do nosso grupo de pesquisa, trouxeram dois novos bolseiros e abriram novas frentes de investigação no campo da história da medicina e da farmácia. A Professora Doutora Ana Leonor Pereira teve um papel fundamental, decisivo mesmo, desde logo como responsável e corresponsável, na organização dos projetos, no seu desenho científico, na investigação e na publicação dos resultados onde a interdisciplinaridade era uma matriz que nós mantivemos desde o início e que pensamos ter alcançado.

De então para cá são múltiplas as atividades em que nós temos estado envolvidos e onde o papel dinamizador da Professora Doutora Ana Leonor Pereira foi sempre decisivo. Assinale-se, por exemplo, em 2003 a organização do Colóquio Internacional Rotas da Natureza. Cientistas, Viagens, Expedições e Instituições, comemorativo dos dez anos da Red de Intercambios para la Historia y la Epistemologia de las Ciencias Quimicas y Biologicas / RIHECQB. Deste colóquio internacional resultou a publicação da obra Rotas da Natureza. Cientistas, viagens, expedições e instituições (2006).

Gostaria de destacar, também, os variados projetos em que temos participado com base na Universidade de Salamanca dinamizados por Juan António Rodriguez Sanchez e que envolveram e envolvem muitas outras instituições. Lembrar também a participação da Professora Doutora Ana Leonor Pereira no projeto científico e editorial coordenado por Thomas E. Glick e Elinor Shaffer, The literary and cultural reception of Charles Darwin in Europe (2014), projeto denotadamente interdisciplinar, que levou bem além-fronteiras o nome do nosso grupo e do centro de investigação através de Ana Leonor Pereira e de um nosso discípulo. O mesmo acontece com a publicação do livro Darwin, Evolution, Evolutionisms (2011). A temática da receção de Darwin e do darwinismo em Portugal é outro exemplo de um tema que era investigado por Ana Leonor Pereira antes da fundação do GHSCT e que constituiu objeto da sua brilhante tese de doutoramento em dois volumes intitulada Darwin em Portugal (1865—1914). Filosofia. História. Engenharia Social. Em 2009, a propósito das comemorações darwinianas o “International Meeting Darwin, darwinisms and evolution (1859-2009)” liderado pela Professora Doutora Ana Leonor foi uma das várias iniciativas alusivas ao tema tendo decorrido várias publicações.

A história da loucura, psiquiatria e saúde mental, constitui outra linha importante do nosso grupo de pesquisa agora também com vários cultores. O trabalho da Professora Doutora Ana Leonor Pereira neste domínio, tal como aconteceu com a receção de Darwin em Portugal, foi inicialmente desenvolvido antes do surgimento do CEIS20. Depois da institucionalização do GHSCT esta linha de pesquisa constitui uma matriz identificadora do nosso grupo, tendo sido decisivo o papel da Professora Doutora Ana Leonor Pereira. Desde 2010 que organizamos um congresso sobre o tema: em 2024 será o XV International Congress on the History of Madness, Psychiatry and Mental Health e o VII International Symposium Women and Madness uma iniciativa anual que congrega mais de duzentas participações, tem cariz internacional e interdisciplinar. Têm estado presentes nestas iniciativas alguns dos melhores cultores mundiais sobre o tema. Sobre a mesma temática registe o empenho da Professora Doutora Ana Leonor Pereira na coordenação das obras coletivas que tem publicado anualmente. Referimo-nos à História Interdisciplinar da Loucura, Psiquiatria e Saúde mental que em 2023 teve o décimo terceiro volume e a obra Mulheres e Loucura que em 2023 teve o sexto volume. Estão em marcha os volumes seguintes. Estas publicações mostram a vitalidade das iniciativas referidas onde o papel de cocoordenadora da Professora Doutora Ana Leonor Pereira é absolutamente fulcral.

Devemos salientar também, entre outros, a realização em 1º Congresso Internacional de Cultura Humanística-Científica Contemporânea "Miguel Bombarda e as singularidades de uma época" (2002), em nosso entender o primeiro congresso interdisciplinar realizado pelo CEIS20 e que Professora Ana Leonor Pereira organizou e que teve mais de duzentas inscrições e do qual resultou a obra Miguel Bombarda e as singularidades de uma época (2006).

Podíamos referir muito mais no plano institucional e o papel dinamizador de Ana Leonor Pereira na organização de eventos científicos, na organização de eventos divulgativos, bem como em inúmeras publicações. É o caso, entre vários, dos dez ciclos Conferências Medicina, Cultura e Sociedade, dos cinco ciclos de Conferências Ciência, Arte e História, dos vinte e sete Colóquios Internacionais Temas de Cultura Científica, das variadas iniciativas integradas na Semana da Ciência e da Tecnologia, da sua participação em exposições científicas, etc.

Ana Leonor Pereira orientou uma quantidade significativa de doutoramentos (12 concluídos) numa área muito especializada, muitos deles com bolsa da FCT e de outras instituições e tem outras teses em curso. Orientou várias teses de mestrado, bem como trabalhos de pós-doutoramento. Orientou alunos portugueses e estrangeiros. Eu e a Professora Doutora Ana Leonor Pereira conseguimos uma malha de relações de âmbito internacional importante em países como Portugal, Espanha, França, Bélgica, Suíça, Alemanha, Inglaterra, Brasil, México, Argentina, entre outros, projetada nos nossos trabalhos científicos. O papel da Professora Doutora Ana Leonor Pereira tem sido igualmente decisivo no curso de doutoramento em Estudos Contemporâneos. Estabelecemos em conjunto as orientações programáticas da unidade curricular de Ciências, Saúde e Sociedade tendo nós criado uma linha coerente de lecionação em conjugação com a matriz do nosso grupo de investigação, coerente com a orientação interdisciplinar do CEIS20.

Gostaria de registar que a presença da Professora Doutora Ana Leonor Pereira foi muitíssimo importante na construção do CEIS20 e imprescindível na fundação do GHSCT continuando a legar uma muito interessante escola científica e de discípulos. Os trabalhos que temos em curso e os objetivos científicos e institucionais que pretendemos alcançar permite-nos pensar e atuar no que ainda há para estabelecer e realizar e que pode ser encarado como um futuro risonho sustentado no sólido rasto histórico pessoal e institucional que foi semeado e que se encontra projetado.

João Rui Pita
Fevereiro de 2024