Este site utiliza cookies para lhe proporcionar uma melhor experiência de utilização. Ao navegar aceita a política de cookies.
OK, ACEITO

Editorial – António Pedro Pita

O anterior Coordenador do CEIS20 assina o Editorial deste mês da Newsletter do CEIS20
30 janeiro
© Cláudia Morais/CEIS20

No âmbito da celebração dos 25 anos do CEIS20 e do Colóquio CEIS20 – 25 anos: história, perspectivas e práticas na interdisciplinaridade, António Pedro Pita, anterior Coordenador Científico do CEIS20, assina o Editorial de janeiro. Este depoimento dá continuidade a um ciclo de editoriais subordinados ao tema da Interdisciplinaridade no Centro assinados pelos seus anteriores Coordenadores Científicos.


Breve depoimento* sobre uma prática de Coordenação Científica

O presente depoimento constitui uma retrospetiva muito esquemática da importância que atribuí à definição de uma estratégica interdisciplinar durante o período em que desempenhei as funções de coordenador científico do CEIS20. Não é, portanto, nem uma história desse período nem uma reflexão sobre o lugar do Centro na investigação na área das ciências humanas e sociais.

1. Desempenhei as funções de coordenador científico do CEIS20 entre 2011 e 2016. Nesse período, como era habitual, fui também diretor da revista «Estudos do Século XX» e coordenador do Programa de Doutoramento em Estudos Contemporâneos.

No entanto, sou membro integrado do Centro desde a sua fundação, em 1998 com atividade regular no Grupo a que estou afeto (na sua designação mais duradoura: “Correntes artísticas e movimentos intelectuais”).

Dessa atividade realço a organização em 2004 do colóquio «Transformações estruturais do campo intelectual português, 1900-1950», em colaboração com Luís Trindade e a preparação, em 2009, do volume 9 de «Estudos do Século XX» subordinado ao tema “Hipóteses de Século”. Esta menção justifica-se porque, nos dois casos, houve o propósito de identificar uma temática (não lhe chamarei, agora, “objeto”) cuja exploração requeria o contributo de vários saberes (não lhe chamarei, agora, “disciplinas”). A sensibilidade para a questão que hoje nos ocupa estava viva e queria transformar-se em consciência operativa.

Essa presença ativa no Centro permitiu-me ainda acompanhar vários momentos de avaliação e reter uma observação que se tornou permanente e que consta dos Relatórios de vários painéis. A observação é: são limitadas e, portanto, são insatisfatórias a organização e a prática interdisciplinares de um Centro que se quis chamar a si próprio Centro de Estudos Interdisciplinares; quanto à organização: o Centro estrutura-se não rigorosamente em “disciplinas” mas em “áreas temáticas especializadas”; quanto às práticas: não são visíveis as relações que essas áreas temáticas estabelecem entre si e também não é claro, portanto, onde se quer chegar com o contributo dessas áreas temáticas.

2. Quando assumi a coordenação científica, essa consciência ganhou mais nitidez e o modo de operacionalizar uma estratégia interdisciplinar tornou-se urgente.

As noções básicas foram as seguintes:

 1ª, era indispensável incentivar as relações científicas entre as áreas de conhecimento (admitindo que estas áreas disciplinares pudessem reconfigurar-se e que outras, novas, fossem criadas);

 2ª, esse incentivo seria facilitado pela existência de um tema/problema/objeto cujo conhecimento aprofundado requeresse o contributo de várias áreas de conhecimento;

 3ª, a chamada “interdisciplinaridade”, apesar da sua aparente nitidez, não era e não é uma noção inequívoca nem uma prática imediata; por isso, era necessário esclarecer um determinado entendimento da noção que fosse adequado à organização e aos propósitos do CEIS20;

 4ª, os trabalhos inerentes a cada uma destas noções deveriam avançar, tanto quanto possível, em simultâneo.

3. Em 2011, como, aliás, em 1998, a extensa bibliografia sobre o tema já era esclarecedora em dois pontos fundamentais: 1º, distinguir rigorosamente “interdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade” e “transdisciplinaridade”; 2º, “interdisciplinaridade” é o nome de várias perspetivas sobre relações entre disciplinas – sendo mesmo algumas dessas perspetivas quase inconciliáveis entre si.

A urgência deste debate levou o CEIS20 a assumir a responsabilidade de organizar o 2º Ciclo de Conferências e Debates Interdisciplinares. Promovido pelo Instituto de Investigação Interdisciplinar, realizou-se no dia 28 de abril de 2014. A Imprensa da Universidade publicou em 2016 as comunicações apresentadas sob o título «Interdisciplinaridade e Universidade». No volume não foi possível incluir, infelizmente, a comunicação de Olga Pombo.

4. O facto de as “disciplinas” e, portanto, o mapa disciplinar em que se movem os investigadores terem uma história (cf. Fernando Gil, “Disciplinas: invenção, transmissão, habitusin Manuel Maria Carrilho (org.), «História e Prática das Ciências». Lisboa: A Regra do Jogo Edições, 1979, p. 239-321. Esta reflexão, remodelada, foi integrada e ampliada por Fernando Gil em «Mimesis e Negação». Lisboa: Imprensa Nacional, 1984, p. 389-437) permite esclarecer melhor quer a ocorrência de fragilidades disciplinares – isto é: a noção de que um determinado “ponto de vista” não resolve um determinado problema – quer a necessidade de recorrer a outros “pontos de vista” (mas quais?) para essa resolução.

Percebi o primado do “problema”. Ou, pelo menos, que era a existência de um determinado “objeto” que deveria provocar trabalhos de várias áreas disciplinares (F. Gil, «Mimesis e Negação», p. 435). Tomei de empréstimo orientador duas observações de Fernando Gil: 1ª, “qualquer objeto é, por essência, sobredeterminado, cada coisa, para ser o que é, representa e exprime uma rede de condições e de determinações, relevando de uma multidão de áreas disciplinares” ; 2ª, o conhecimento desse objeto pode resultar não de unificações disciplinares a priori mas do percurso de “cruzamentos inter-disciplinares nos campos onde eles se produzem, a circulação dos conceitos, a rede das conexões de facto: a articulação dos empréstimos, homologias, ressonâncias, deformações” (Cf. Fernando Gil, “Disciplinas: invenção, transmissão, habitus”, p. 314).

Decorreu destes pressupostos o lançamento, em 2013, de dois Programas de Investigação: «Dois séculos de liberalismo, 1820-2020: formas de estado, movimentos sociais, dispositivos de subjetivação» e «Mobilidades: indivíduos e ideias entre lugares».

Supunha que o arco cronológico de dois séculos (simbolicamente contados a partir da Revolução de 1820) e os processos de circulação de indivíduos, povos e ideias eram suficientemente sugestivos para desencadear, em vários grupos, itinerários de conhecimento que se cruzassem com itinerários de outros grupos.

Apesar de todas as dúvidas, dificuldades, hesitações ou incertezas estava e estou convicto de que o trabalho no âmbito desses dois Projetos, quer nos seus aprofundamentos específicos quer nas suas convergências permitiria uma inteligibilidade de um “objeto teórico”: Século XX – um “objeto teórico”, não uma realidade empírica ou uma simples referência cronológica, em obediência direta à própria designação do Centro. A reflexão posterior levou-me a concluir que falta de uma liderança efetiva dos Programas contribuiu para o seu fracasso prático.

Relativamente a este tópico, duas breves notas: 1ª, na sequência de uma reflexão demorada, o CEIS20 ampliou o seu universo de referência e a relação privilegiada com o século XX desapareceu; para mim, essa questão está resolvida e só a referi agora para responder com exatidão ao que me foi pedido (“como é que, como coordenador científico, encaminhei a definição de estratégias interdisciplinares”); 2ª verifico que os Projetos de Investigação, nos exatos termos em que foram definidos em 2013, permanecem no site do CEIS20; dada a irrelevância, para não dizer o fracasso, que constituiu a sua proposta e num período de profunda reflexão como aquele que atravessamos talvez fosse bom avaliar a coerência dessa permanência.

5. Um último parágrafo para alinhar três breves conclusões: 1ª, não podemos opor o aprofundamento da investigação disciplinar à prática interdisciplinar; 2ª, a prática interdisciplinar não implica necessariamente, em cada momento, todas as áreas científicas; 3ª, a prática interdisciplinar que me parece mais adequada a um Centro como o CEIS20 é a que resulta dos “cruzamentos disciplinares” onde eles ocorram, de acordo com as necessidades de conhecimento do objeto em análise; o que significa: dar o primado à construção teórica do objeto de conhecimento e ponderar áreas disciplinares que se mostrem relevantes para a sua inteligibilidade.

* Este depoimento serviu de base à minha intervenção no Colóquio CEIS20 – 25 anos: história, perspectivas e práticas na interdisciplinaridade, que decorreu nas instalações do CEIS20 no dia 22 de novembro de 2023.


CEIS20, 22 de novembro de 2023
António Pedro Pita
(Professor Catedrático na Universidade de Coimbra. Investigador integrado do CEIS20)